quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Wargus







As sociedades germânica e escandinava antigas, pré-existentes ao advento da Idade Média, apresentavam, como um dos elementos centrais de suas leis e conceitos jurídicos, a idéia de Fried, ou seja, de Paz. O mal-feitor condenado por um determinado crime na comunidade era dela excluído, e, conseqüentemente, tornava-se um friedlos, um “sem-paz”.

A principal característica de um friedlos era a ausência de qualquer espécie de proteção jurídica sobre sua pessoa. Qualquer homem poderia matá-lo, espancá-lo, roubá-lo, sem que com tal ato estivesse praticando homicídio, agressão ou roubo. Justamente por isso ele era um “sem-paz”.

Durante a Idade Média, a figura do bandido - comumente chamado de wargus, ou homem-lobo - herda as características do friedlos, na medida em que várias das leis do período definiam-no como passível de ser assassinado por qualquer pessoa, e, em certo sentido, consideravam-no como já morto.

As leis sálica e ripuária, por exemplo, usavam a expressão latina "wargus sit, hoc est expulsus", representando a exclusão do bandido, do homem-lobo, da comunidade, decorrendo daí a sua “morte” e a sua “matabilidade”. Não à toa, as lendas sobre lobisomens são, em certa medida, uma ressonância do temor e do perigo representados pelo wargus.

A incorporação desses conceitos a uma campanha de RPG pode gerar algumas sugestões interessantes de linhas de enredo e até mesmo de aventuras inteiras. Um Reino poderia ser organizado a partir da Fried, e suas leis e costumes seriam uma derivação da tentativa de manutenção da paz, ou seja, da ausência de crimes. As pessoas estariam particularmente preocupadas tanto em eliminar os elementos considerados como wargus na comunidade, quanto em evitar ser declarada como “sem-paz”.

Um bando inteiro de bandidos poderia ter sido declarado friedlos, e, com isso, seria um alvo tentador para a sanha justiceira de um grupo de aventureiros. Entretanto, não bastaria simplesmente capturá-los, ou derrotá-los e expulsá-los da região. As autoridades locais teriam estipulado uma alta recompensa não pela sua captura, mas sim pela sua morte - até o último dos “homens-lobo”. Qual seria a reação de personagens “bons” e “ordeiros” a esse tipo de recompensa? Ou, em suas culturas, o assassinato daqueles que já estão mortos não é considerado como um ato mau? 

Por outro lado, o fato de os bandidos terem se tornado um alvo fácil poderia transformá-los em homens desesperados, e, portanto, muito perigosos. Imagine-se um bando de ladrões que luta, a cada tentativa de saque, não só pela aquisição de mercadorias e pilhagens, mas também pela própria vida, já que uma eventual captura resultaria certamente em suas mortes. Eles se esconderiam em locais ermos e distantes, e evitariam ao máximo o confronto com grupos que não fossem extremamente fáceis de ser derrotados. Não seria fácil para um grupo de aventureiros famosos e de boa reputação encontrar os wargus, pois, para eles, fugir faria muito mais sentido.

Uma série de outras questões surge da circunstância de os bandidos serem “sem-paz”. Com quem eles comerciariam? Quem lhes forneceria armas e suprimentos? Quem os abrigaria e protegeria? Ora, em uma sociedade na qual vigora a idéia de Fried, dificilmente os bandidos teriam a simpatia de qualquer grupo social, já que, em verdade, eles são uma fonte de constante terror e problemas. Nem mesmo outros ladrões, que ainda não houvessem sido declarados friedlos, nem mesmo camponeses explorados e tiranizados, ousariam compactuar com os bandidos, seja pelo medo, seja pelo risco de serem eles próprios também incluídos entre os “sem-paz”. Até mesmo figuras extremamente malévolas, ambiciosas e corruptas teriam excelentes motivos para não apoiarem os wargus. Talvez forças estrangeiras e beligerantes os amparassem. Mas o mais provável é que eles não contassem com a ajuda de ninguém, e dependessem sempre de suas pilhagens para sobreviver e prosperar.

Olhando a questão sob outro ângulo, as atividades comumente empreendidas por um grupo de aventureiros muitas vezes aproximam-se bastante da criminalidade. Profanar tumbas antigas, matar outros guerreiros em combate, emergir de castelos ermos carregados de tesouros, são todos atos que facilmente podem sem interpretados como crimes - principalmente se os aventureiros forem pouco conhecidos, tenham má reputação ou inimigos poderosos. Ora, e se os personagens fossem eles próprios declarados wargus? Certamente, tal grupo estaria metido em uma bela enrascada ...

Assim como os bandidos, um grupo de aventureiros julgados como friedlos viveria sob constante risco de morte. Qualquer pessoa, em qualquer lugar, a qualquer momento, dentro da região onde eles foram condenados, poderia tentar matá-los sem temer represálias legais. Em verdade, haveria um estímulo mesmo, quiçá financeiro, para o assassinato dos membros do grupo. Sua vida seria uma longa e angustiante fuga em paranóia. Isso sem contar com uma série de outros problemas, na medida em que os personagens não encontrariam abrigo seguro, não seriam ajudados pelas pessoas, não teriam nem como comprar nem como vender mercadorias, armas ou comida, e assim por diante.

Qual seria o comportamento dos aventureiros diante de tal quadro? Eles tentariam limpar seus nomes? Mas, como? E, isso é possível dentro das leis do Reino? Ou, ainda, eles foram erroneamente condenados como friedlos, ou verdadeiramente cometeram um crime que justificasse a condenação, ainda que inconscientemente? Talvez fosse mais fácil simplesmente fugir do país. Há uma quantidade ilimitada de situações de tensão que podem surgir da condição de “foras-da-lei matáveis” dos personagens. Campanhas completas podem se embasar nesse problema.

Como reagiria um paladino subitamente condenado a ser wargus?

Por fim, uma das formas mais interessantes de se utilizar a idéia é construir a figura do wargus solitário, do vilão extremamente complexo e letal. Um monstro completamente louco e demente, cujo grau de maldade é tão alto que as lendas o aproximam do lobo. Ele é o verdadeiro lobo do homem - que, por não pertencer mais à comunidade dos homens, a ela ameaça e dela se alimenta. Tal personagem poderia ser vista pelas pessoas comuns até mesmo como um verdadeiro lobisomem - monstro que, em um aventura de RPG tradicional, ele certamente também poderia sê-lo.

O wargus solitário pode facilmente ser o némesis, o arqui-inimigo do grupo de aventureiros. Por se tratar de um vilão que age solitariamente, ele tentaria constantemente atrapalhar os personagens, prejudicar seus interesses e vilipendiar seus entes queridos e propriedades. Extremamente perigoso, encontrá-lo seria não só difícil, como, provavelmente, indesejável. E, se bem conduzido interpretativamente, o homem-lobo permaneceria por muitas sessões como um inimigo odiado, temido, e inesquecível.
 

3 comentários:

  1. Excelente artigo/post. Realmente bem instigante e inspirador. Com certeza pensarei bem sobre essa questão de Fried e dos Friedlos/Wargus

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  2. Muito boa a idéia. Estou acompanhando o blog há pouco tempo mas tenho gostado bastante. parabéns!

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  3. Youkai X e Daniel: Muito grato pelos comentários elogiosos. Abraços.

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