sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Direito e RPG - Parte I.




Do ponto de vista do relacionamento de um grupo de aventureiros com as leis e o sistema jurídico das regiões onde habitam e viajam, a maioria dos sistemas de jogo e de cenários de aventura assumem uma perspectiva simplista, haurida da Idade Média européia, período no qual era fraca, para não dizer quase completamente inexistente, a influência do Direito na vida da grande maioria das pessoas. Historicamente, porém, as coisas transcorriam de um modo bastante diferente - principalmente tendo em vista o período de transição da Idade Antiga para a Idade Média.

A queda do Império Romano do Ocidente legou aos reinos bárbaros que o sucederam um vasto território, que era, de certa forma, unificado juridicamente por meio do Direito Romano. Antes de sua conquista por Roma, as terras européias eram fragmentadas politicamente e dominadas por culturas em estágios de desenvolvimento político e social menos complexos que os da cultura romana. Assim, foi possível para Roma, ao anexar a Gália, a Península Ibérica e outras regiões européias, impor sua cultura e sua organização política aos povos que ali habitavam.

O conflito entre o Direito bárbaro invasor e o Direito romano dos conquistados foi, a princípio, solucionado pela idéia de “personalidade do Direito”: os homens de origem bárbara estavam sujeitos ao Direito bárbaro consuetudinário, e os romani (homens de origem romana) permaneciam sujeitos ao Direito romano vulgar - que era assim chamado porque a queda do Império e o desaparecimento dos principais componentes da antiga cultura jurídica (as escolas de Direito, a jurisprudência, a legislação imperial, o saber dos juristas), além do empobrecimento intelectual do Ocidente nessa época, reduziram o Direito romano a um direito consuetudinário provinciano, prevalecente na Itália e no sul da França.

O Direito bárbaro era caracterizado pela idéia da “eternalidade” das leis e dos princípios jurídicos; o Direito era considerado fixo e imutável, podendo ser apreendido pelas pessoas, mas nunca criado por elas. Portanto, dificilmente uma atividade legislativa ao menos semelhante à romana poderia ter se desenvolvido nos reinos bárbaros.

Com a evolução histórica dos reinos bárbaros, foi desaparecendo essa dicotomia diante do ressurgimento de compilações jurídicas - como, por exemplo, a Lex Romana Visigothorum - e de uma nova atividade legislativa, possibilitada pela restauração do Império Romano do Ocidente pelos francos, que legislavam por meio das “capitulares”, que eram leis simples e escritas. Por fim, devido à total fragmentação política e territorial européia imposta pelo sistema feudal, o Direito romano e o próprio Direito dos povos bárbaros desaparecem, substituídos pelo Direito feudal, usualmente esparso e desprovida de real efetividade.

Quatro interessantes estágios de desenvolvimento jurídico acima apresentados podem ser usados para dar maior vida a um cenário de campanha, e originar aventuras embasadas em problemas e questões legais.

Em um mundo dominado por um Império vasto e unificado, semelhante ao Romano, um sistema jurídico complexo faria parte da vida diária de qualquer pessoa, e, por conseqüência, de qualquer grupo de aventureiros. As leis e a jurisprudência - seja essa a sabedoria haurida dos filósofos do direito, ou o conjunto de decisões passadas tomadas pelos juízes do Império - seriam de extrema relevância, e teriam algum efeito sobre boa parte das atividades desenvolvidas pelos personagens em suas aventuras.

Os personagens trouxeram tesouros de suas explorações em terras ermas e distantes? Certamente haverá regras, no Império, sobre quanto desses bens pertencem aos personagens, e quanto será devido como imposto ao Estado. Os personagens mataram um inimigo em combate? Talvez a família dele processe os assassinos em busca de uma compensação financeira, ou de uma punição criminal. O grupo arrumou um inimigo rico e poderoso? Ele poderá subornar juízes e autoridades para aplicar as leis e a jurisprudência com um rigor incomum sobre os aventureiros.

Dentro do Império, os personagens se veriam obrigados a obedecer às leis universalmente válidas para seus habitantes - e dentro de cada cidade, teriam que respeitar as leis específicas daquela região. Pode ser que existam regras sobre a compra e venda de animais de carga, que limitem a capacidade dos personagens de transportar tesouros. Pode ser que que certas armas, armaduras, ou cavalos de guerra sejam reservados para uso do exército, e sua posse ilegal seja passível de alguma punição. Ou, quem sabe, pessoas pegadas portando armas ou itens de natureza mágica sejam imediatamente arremessadas aos calabouços, ou coisa pior ...

Em tais circunstâncias, os personagens talvez tenham que constantemente consultar  jurisconsultos - especialistas no Direito do Império -, e, até mesmo, especialistas nas leis e regras específicas de cada local que visitarem - se é que subitamente não se vejam na necessidade de tratar com juízes, ou, oh, horror, contratarem defensores de suas causas semelhantes a advogados. Em sistemas que usam regras de proficiência, ou de “skills”, pode ser bastante interessante que um dos personagens tenha conhecimentos jurídicos sobre o sistema legal do Império, facilitando assim o dia a dia do grupo junto às autoridades imperiais.

Outro conceito presente no Império Romano, que pode ter grandes implicações em uma campanha de RPG, é a idéia de cidadania. Especificamente na experiência romana haviam cidadãos romanos, o povo romano, e os estrangeiros. Cada um desses estratos jurídico-políticos estava submetido a um conjunto de leis e regras de Direito diferentes. Os cidadãos eram os que possuíam a maior gama de prerrogativas jurídicas e amparo do Estado; o povo romano recebia uma proteção menor, e podia exercer bem menos direitos. E, finalmente, os estrangeiros eram agraciados com uma pequena quantidade de direitos considerados inerentes a qualquer ser humano.

Qual seria o tratamento dado pelo Império a membros de outras raças? Eles teriam os mesmos direitos dos humanos, ou seriam desprezados e marginalizados pelo Direito Imperial?

Pode fazer muita diferença, portanto, qual a origem e a raça dos personagens. O tratamento recebido por eles será bastante divergente, caso eles sejam cidadãos plenos, simples membros do povo, ou estrangeiros. Tal problema, inclusive, pode ser considerado no momento mesmo da criação dos personagens, tendo em vista suas expectativas interpretativas e o tipo de aventura que o mestre pretende conduzir.

Analisar-se-á, a seguir, o impacto da idéia de “eternalidade” do Direito para uma campanha de RPG.

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