sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

O Diamante




A casa de Ariandar, desde seu nascimento, enfrentara severas complicações para impor sua efetiva autoridade sobre a cadeia de oásis que em tese compunham seus domínios hereditários. A presença de tribos de salteadores, de senhores locais rebeldes, de bandoleiros e assaltantes, impossibilitava que o pequeno exército legalista mantivesse a ordem além do grande oásis de Velorn, no qual residia o próprio lorde Ariandar e sua família. Assim, esta nobre estirpe, mesmo sendo a principal força política da região, não controlava nem um quinto do poder que seu feudo a princípio forneceria.

Sussurrava-se pelas areias do deserto que o problema dos Ariandar era a eterna ausência de um patriarca competente e de pulso firme. Tais rumores não deixavam de conter certa verdade, pelo menos até a ascensão de Ilshen Ariandar ao poder. O atual soberano, a partir do momento em que tomou o cetro das mãos de seu pai enfermo, iniciou a árdua tarefa de compensar a inépcia de seus ascendentes.

Ilshen mostrou-se um político e estrategista superior. Aliando-se com várias das cidades costeiras ao sul, o nobre varão tomou por esposa a jovem filha do rei da cidadela de Pirre. O acordo garantiu-lhe amplo acesso a armas e suprimentos raramente encontrados no deserto. Um renovado exército Ariandar, bem equipado e treinado, varreu as areias por dois decênios de guerras ininterruptas, que culminaram na consolidação final do poder de Ilshen sobre os domínios que lhe pertenciam por direito.

Em uma de suas viagens comerciais para Pirre, Ilshen conheceu Arhus e seus Tigres Vermelhos. O capitão mercenário tornara-se famoso por sua lealdade e brilhante atuação junto dos exércitos aliados das cidades do sul contra as pretensões expansionistas do rei de Saica. Ciente das excelentes qualidades de Arhus, Ilshen ambicionou contratá-lo para suas guerras particulares. O encontro entre ambos foi marcado por um imediato senso de confiança mútua e cordialidade.

Os Tigres Vermelhos participaram dos últimos dois anos de batalha no deserto, e foram decisivos para a vitória final dos Ariandar. Ilshen e Arhus tornaram-se grandes amigos - o mercenário era admitido sem ressalvas nas tendas privadas da nobre família, e suas ordens eram inferiores apenas às do próprio Ilshen. Os mercenários viviam calmos e contentes, pois fartos eram o soldo e as regalias.

Um ano antes disso, Ilshen convidara o capitão para jantar junto de sua família, em comemoração pela aniquilação de um grande bando de saqueadores. Nessa ocasião Arhus conhecera Melissa, a filha mais nova de Ilshen. Era uma jovem linda, de vigorosa pele morena e longos cabelos dourados. Quando o mercenário respeitosamente a cumprimentou, seu sorriso foi secreto, e seus olhos verdes suspiraram nos ouvidos do guerreiro; Arhus soube que perdera seu coração e sua alma.

Amava-a perdidamente. Ambos encontraram-se diversas vezes ao longo do ano seguinte. Melissa perfumava-se com almíscar, conversava languidamente, em breves momentos deixava suas peles roçarem-se – mas jamais concedia seus favores. Arhus desesperava-se. Contemplava a beldade tantas vezes à sua frente, o fino colorido traje de seda, leve como o luar. Arriscava:

“Guerreando junto de teu pai, eu posso cair no campo de batalha a qualquer dia”.

Melissa dava um curto misto de sorriso e risadinha. Espreguiçava-se entre as almofadas.

“Você não teria coragem de fazer isso comigo, teria?”

Arhus perdia o fôlego.

Entretanto, o mercenário jamais recebeu um beijo, jamais envolveu-a em um terno abraço. Melissa desviava-se, fugia, habilmente chamava por uma criada. Quando a campanha finalmente chegou ao fim, Arhus temeu ter que partir em busca de novos contratos, e não mais encontrar a jovem Ariandar, objeto de seu afeto. Procurou-a, e declarou:

“Eu te amo, nada sou sem a tua presença”.

A jovem fez-se de desentendida. Envergonhou-se, corou e respondeu, voz baixinha, mas debochada:

“Eu, ... eu não sabia”.

O sangue de Arhus ferveu diante de tamanha afronta. Irado, retirou-se para sua tenda particular.

Alguns dias depois, eles cruzaram-se em um passeio entre palmeiras. A expressão facial dela delineou-se tão apaixonada que Arhus não pôde resistir encontrá-la a sós no dia seguinte.

“Melissa, eu preciso de ti, preciso dos teus carinhos”.

O mercenário avançou, tentou tocá-la, beijá-la. Ela o empurrou com força para trás. Ambos hesitaram. Melissa arrumou sua roupa abarrotada e respondeu:

“Eu não tenho certeza de que você me ama”.

Arhus irritou-se, ainda que curioso:

“Ora, como não? Não vês o brilho nos meus olhos?”
“Pode ser mera lascívia. Que provas tens de que me amas?”
“Passar um ano junto de ti sem nada exigir em troca não prova o suficiente?”
“Não”.

Arhus sentiu as veias da face incharem. Passou as mãos pelo rosto, tentando conter a cólera. Respirou fundo, mudou de tom:
“E como posso provar meu amor?”
“Você faria qualquer coisa por mim?”
“Sim”.
“Há uma lenda que fala sobre um diamante mágico, magnífico e perfeito, por meio do qual é possível ver o que se passa no coração da mulher amada”.
“Queres esse diamante?”
“Traga-o de presente. Assim, eu poderei ver se o que tu verás nesse diamante será o meu coração ou não. Daí serei tua”.

As últimas palavras de Melissa fizeram o mercenário estremecer.

“Onde se encontra tal riqueza?”
“Perdida pelo deserto. Cantam os trovadores sobre um templo perdido nas áridas vastidões. Dizem que lá está o diamante. É uma jóia única, jamais rivalizada”.
“Serás minha, então?”
“Serei, já não disse?”

Arhus sorriu como uma criança, e fazendo uma leve mesura, voltou para junto de seus mercenários.

 Ele devia ter desconfiado. Era lógico que a conquista de uma jovem bela e rica exigia presentes dessa natureza.

O mercenário passou toda uma semana preparando-se para a jornada deserto adentro em busca do benfazejo diamante. Requisitou uma dispensa de seu senhor, argumentando a necessidade de resolver alguns assuntos particulares nos reinos ao norte. Na taverna de um famoso comerciante, comprou de um mago cego o mapa que indicava, de forma não muito precisa, a região na qual um dia ergueu-se o Templo do Diamante. O mago, previdente amigo, solicitou ao guerreiro que tomasse cuidado ao adentrar o Templo, pois eram incalculáveis os perigos que poderiam guarnecer uma antiga ruína, ainda mais se consagrada a algum deus desconhecido.

Arhus adquiriu dois resistentes cavalos das estepes; abasteceu-se de comida e água para vários dias; armou-se de arco, flecha, cimitarra e escudo; comprou o equipamento necessário para realizar uma possível escavação: corda, pá, ganchos, etc. Infelizmente aquela era uma viagem a ser empreendida sozinho. Temia que algum companheiro, ao deparar-se com a pedra preciosa de valor incalculável, tentasse matá-lo para fugir com o diamante. Assim, sem dar muitas explicações, Arhus recomendou a seus soldados que o esperassem por dois ou três meses, e partiu deserto adentro.

A travessia pelas ermas vastidões foi pouco tranqüila. O calor infernal estragou uma boa parte das provisões. As severas variações térmicas entre noite e dia causaram a morte de um dos cavalos. Certo dia, a desatenção de Arhus resultou em terrível ataque de um enxame de mosquitos, habitantes de uma salina natural próxima. Eles picaram-lhe todo o corpo, encheram-no de feridas, tomaram grandes goles de seu sangue, deixando-o extremamente fraco e machucado. O mercenário amaldiçoava os deuses por suas dificuldades. Talvez o próprio panteão do Templo não desejasse que ele o profanasse.

Entretanto, após um mês estafante de buscas, o mapa do mago mostrou-se verdadeiro, e Arhus localizou o que parecia ser a ruína do Templo. Enterradas na areia, mas ainda visíveis, duas grandes rodas circulares de barro se entrecruzavam, formando uma espécie de portão. Decoravam-no arabescos indecifráveis. Tal disposição levou o mercenário a acreditar que as fundações do Templo haviam cedido e se curvado, fazendo com que este mergulhasse quase que por completo nas dunas escaldantes. Orou ao deus desconhecido daquele local sagrado, agradecendo pela ventura de ter conseguido localizá-lo.  

O antigo portal cedeu facilmente quando Arhus fincou a pá em sua borda e forçou-o para frente. Um cheiro horrível assaltou as narinas do herói. Uma escada velha e musgosa conduzia para o interior do Templo. Lá inexistiam os belos enfeites das rodas circulares – o local era uma catacumba úmida e sombria, um labirinto terrível composto de corredores tortuosos e passagens apertadas. Tomado pelo asco, mas decidido a obter o precioso diamante, Arhus penetrou pelas confusas galerias, tentando orientar-se por meio de sua tocha e de pequenas diferenças nas paredes do Templo, as quais procurava guardar na memória.

Obviamente o herói perdeu-se; nenhum homem, qual fosse sua inteligência, seria capaz de compreender a loucura do padrão daquele labirinto. Muito tempo passou, o mercenário desesperava-se, temendo não encontrar sequer o caminho de volta. Mas o Templo amainou sua resistência. Gradualmente foi permitindo que Arhus encontrasse os corredores corretos, que se lembrasse dos locais por onde já passara, e seguisse as passagens não trilhadas.

Assim a tortuosa busca foi tornando-se mais simples. O mercenário, feliz, acreditava que agora o deus favorecia seu intento. Por fim, encontrou a câmara central daquele pesadelo, na qual encontrava-se guardado o diamante. Um simples pilar de pedra erguia-se no centro da sala. Em seu topo residia, desguarnecido, o gigantesco diamante. Era uma pedra belíssima, resplandecente, sem falha alguma. Arhus desconfiou daquilo. Não era possível que a valiosa riqueza se mostrasse, justamente na etapa final de sua busca, tão simples de ser obtida. Arhus acreditava que alguma sórdida armadilha protegia o diamante.

O mercenário procurou por armadilhas de todas as formas possíveis. Atirou flechas contra o chão e contra o pilar, tateou de longe com sua cimitarra as pedras que pareciam soltas, vasculhou a câmara com os olhos em busca de qualquer mecanismo que pudesse ativar algum perigo. Mas de nada adiantou, realmente estava desprotegida a pedra preciosa. Temerário, aproximou-se do diamante e o pegou, guardando-o em um saquinho de couro. Nada aconteceu. O herói exultou, feliz e satisfeito – sua aventura chegara ao fim.

Mas não chegara. O retorno pelo labirinto foi mais complicado ainda que a primeira experiência de percorrê-lo. Dessa vez, não houve contribuições nem auxílios, o labirinto em nada o ajudou. Arhus passou dias perdido, teve muita fome e sede, beirou a morte e a loucura. Mas acabou encontrando o portal de entrada, guiando-se pelo cheiro de carniça de seu segundo cavalo morto. Mal saíra da catacumba maldita, toda a estrutura desabou, em um estrondo ensurdecedor. O guerreiro agradeceu aos deuses por ter escapado de tão negro destino.

A viagem de volta foi tranqüila, apesar de melancólica e torturante. O ambiente de pesadelo e tristeza do labirinto não abandonava os pensamentos de Arhus. As lembranças terríveis daquelas galerias e dos momentos mais desesperadores acossavam-no incessantemente. Apesar de abalado, e sentindo-se menos homem do que antes, o mercenário conseguiu singrar o deserto em segurança, graças ao seu apurado senso de sobrevivência.

A chegada em Velorn abrandou seu drama pessoal. A idéia de que Melissa seria finalmente sua enchia-lhe o espírito de felicidade, e afastava as memórias daquele tempo maldito. Seus mercenários receberam-no de volta com alegria, e muito festejaram seu retorno. Arhus procurou o mago que tanto o ajudara, e agradeceu com amplas palavras de afeto e uma recompensa extra em ouro. O mago apenas aconselhou-o: “Jamais entre no Templo novamente.”. 

No dia seguinte, Arhus encontrou-se o mais cedo possível com Melissa. Ela estava espetacularmente bela, seu semblante afastou todo o pesar do coração do guerreiro.

“Melissa, minha querida, trouxe-te o ambicionado diamante”.
“Ah, trouxe?”
“O mercenário retirou-o do saco, e mostrou-o a Melissa como se fosse um troféu”.
“Veja, olha como é lindo”.
“É”.

Arhus ofereceu a pedra à jovem, esticando-a com a mão.

“Toma-o”.

Melissa não o pegava.

“O que há?”

Ela virou o rosto.

“Ah, eu não quero mais esse diamante não”.
“Como?”
“É, não quero. Não me interessa mais”.

O mercenário descontrolou-se. Seu sangue esquentou, pior que o calor do deserto. Todas as suas feridas pareciam se abrir, todo o suor da aventura subiu à sua garganta. Agarrou Melissa violentamente pelos braços, trazendo-a para perto de si.

“Possuir-te-ei então aqui mesmo, na tua perfumada tenda!”
“Não ousarias! Não és homem para tanto!”

Seus olhos desafiavam-no.

Arhus hesitou, e terminou por arremessar o delicado corpo de Melissa sobre as almofadas da tenda. Ela escondeu-se entre as almofadas, e nada mais disse. Lentamente o guerreiro acalmou-se. Tomou o diamante nas mãos, e olhou fixamente para seu interior. Já calmo, abandonou a tenda de sua amada.

À tarde, Arhus encontrou-se com o lorde Ilshen. O nobre perguntou-lhe a respeito da viagem, conversaram sobre assuntos variados. O mercenário tomou coragem, e disse:

“Senhor, tenho algo a lhe perguntar”.
“Fala, Arhus”.
“Espero que não seja muita pretensão de minha parte”.
“Ora, capitão, deixa de frescuras! Sabes muito bem que sempre fomos amigos, e dispensamos essas formalidades”.
“Melissa, tua filha mais jovem, é uma mulher muito bela. Perdoa-me se desonro-te perguntando a respeito de seu dote ...”

O mercenário sempre desejou pedir a mão de Melissa diretamente a Ilshen, mas temia não poder arcar com o preço do dote. Mas agora ele tinha o diamante em sua posse, era, no mínimo, um homem riquíssimo. Ainda assim, temia uma recusa devido às suas origens pouco tradicionais.

“Gostas de minha filha, Arhus?”
“Sim, senhor ... muito”.
“Sabes muito bem que sem ti e teus guerreiros essa minha guerra duraria mais dez anos. Minha filha pouco compensa os benefícios que tuas armas me trouxeram. Ela será tua quando desejares”.

Jamais Arhus sentira-se tão feliz; congratulava-se pela sorte e boa ventura. O casamento foi marcado para ocorrer dali a um mês. Nesse tempo, Arhus e Melissa não se viram vez nenhuma, de acordo com a tradição.

A cerimônia foi a mais linda já vista em Velorn. As comemorações e festas foram fartas em bebidas e iguarias, abertas a todas as pessoas do povo. A alegria espalhou-se por todos os domínios dos Ariandar. Apenas Melissa não estava alegre. Nunca estivera tão linda, bem vestida, brilhante e perfumada – mas seu rosto, ainda que encoberto pelo véu, demonstrava apenas desgosto e frustração. A jovem não cedia uma gota de satisfação, não dava um sinal sequer de contentamento. Quando chorou, seguindo o ritual de matrimônio, as lágrimas eram apenas amargas.

Arhus, consumado o casamento, conduziu-a para sua tenda, sob  o júbilo de todo o povo, que amava igualmente a princesa e o herói de guerra. Rija como uma estátua, Melissa sentou-se em uma almofada. O guerreiro ordenou-lhe que levantasse, e retirou o véu de sua face. A jovem perfurou-o com os olhos frios e rancorosos. Ele olhou-a por muito tempo, sem nada dizer ou fazer.

“Agora que sou tua ... não era o que tanto querias? ... Faze o que quiseres comigo. Mas juro que serei nada mais que um bloco de mármore para tuas carícias”.

Ele riu, irritando-a levemente. Deixou o silêncio alongar-se, angustiando a princesa.

“Ainda queres o diamante?”

Os olhos de Melissa refletiram uma tristeza sincera. Ela abaixou a cabeça, voltou-se para o chão.

“Tu ainda o tens?”
“Não ... a princesa Melissa é a única pedra preciosa de que preciso ...”

A princesa ergueu a face e, devagar, foi sorrindo.

“Então, ... viste meu coração dentro do diamante?”

Arhus nada respondeu. Melissa aproximou-se, deixou cair a seda – beijaram-se apaixonadamente um beijo longo e esperado, prenúncio do crepúsculo sensual das noites no deserto.

Quinze anos mais tarde, quando os cabelos do antigo mercenário já eram brancos, e seu espírito estava exausto e marcado, sussurrar-se-á pelas areias do deserto que o grande general Arhus arrependeu-se terrivelmente de não ter escutado os conselhos de um mago cego que conhecera na juventude. Louco, balbuciará, sozinho, maldições contra um labirinto interminável ...

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